A HISTÓRIA DE FORMAÇÃO DO CONSÓRCIO INTERMUNICIPAL PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DA TRANSAMAZÔNICA E XINGU
O Consórcio Intermunicipal para o Desenvolvimento Sustentável da Transamazônica e Xingu pode ser considerando o desdobramento mais recente do histórico de ocupação da região sob a influência da Transamazônica no estado do Pará. Inaugurada em 1972, com cerca de 4.000 km de extensão, a Rodovia Transamazônica (BR-230) corta os estados brasileiros da Paraíba, Ceará, Piauí, Maranhão, Pará e Amazonas e foi planejada e construída com objetivo principal de integrar a Amazônia brasileira ao restante do país (FVPP, 2002). Até 1977, o Governo Federal havia investido recursos consideráveis em educação, saúde, crédito agrícola e conservação das estradas, atraindo para a região pessoas de todo o país em busca de terras para a produção agrícola e pecuária.
Porém, este apoio não foi suficiente para garantir a sobrevivência das famílias na região. Neste contexto, com o declínio da agricultura familiar, que surgiu o movimento social na Transamazônica com o objetivo de lutar por melhorias nas condições de vida das populações rurais, exigindo que o governo investisse em políticas públicas e desenvolvimento (FVPP, 2006). Após anos de luta, surge como demanda deste movimento uma das propostas mais inovadoras no sentido de promover um novo modelo de desenvolvimento para a Amazônia em bases sustentáveis. A proposta, conhecida como “Proambiente”, foi apresentada em maio de 2000 pelas Federações dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura dos Estados da Amazônia Legal (FETAGs da Amazônia) durante o “Grito da Amazônia”.
O Programa de Desenvolvimento Socioambiental da Produção Familiar Rural (ProAmbiente) visava promover o uso sustentável dos recursos naturais, priorizando o emprego de sis- temas de produção que incorporem tecnologias mitigadoras de impactos ambientais, o preparo da terra sem uso do fogo, a utilização de áreas alteradas/degradadas através de implantação de sistemas alternativos de uso da terra, o uso de sistemas agropastoris, sistemas agroflorestais, agroextrativismo, o extrativismo florestal madeireiro (através de manejo comunitário) e não-madeireiro, etc. A proposta, concebida pelos movimentos sociais com apoio técnico do IPAM e FASE (Federação dos Órgãos de Assistência Social e Educacional), representava uma grande conquista no que diz respeito ao controle social das políticas públicas e remuneração dos serviços ambientais prestados à sociedade como um todo. Em 2004, a proposta foi adotada como política pública pelo governo federal. Infelizmente, o programa não se consolidou por uma série de razões, por exemplo, a ausência de um marco legal no Brasil que regularizasse o pagamento de serviços ambientais.
Todavia, o acúmulo de experiências adquiridas durante este processo permitiu ampliar a escala das iniciativas a partir de 2008, em uma parceria entre IPAM e FVPP, a fim de viabilizar a redução das emissões por desmatamento e queimadas no território dos cinco municípios paraenses: Altamira, Anapu, Brasil Novo, Pacajá e Senador José Porfírio, além de promover incentivos para a adoção de um novo modelo de desenvolvimento na região. Estes municípios juntos somam uma extensão territorial de 204,2 mil km2.
Sua população rural corresponde a 35% do total de habitantes. Os cinco municípios representam 181,4 mil km2 de floresta em pé (ver Tabela 9). Entretanto, a perda da cobertura vegetal nos últimos anos foi muito intensa, correspondendo a 41% da área de floresta original no município de Pacajá, 40% em Anapu, 17% em Brasil Novo, 5% em Senador José Porfírio e 4% em Altamira, o que corresponde à emissão de cerca de 220 milhões de toneladas de carbono até 2009 (17% do estoque perdido por todo o estado do Pará).
A iniciativa aqui apresentada teve apoio financeiro da Embaixada Britânica e tinha como objetivo principal motivar uma atuação conjunta entre poderes públicos locais para reduzir os índices de desmatamento e queimadas da região. A fim de envolver o poder público neste debate, foram identificados como parceiros estratégicos desta iniciativa as secretarias de meio ambiente e agricultura dos cinco municípios abrangidos pela área de atuação do projeto, com as quais se firmou um plano de trabalho conjunto.
As atividades iniciais foram, principalmente, focadas na capacitação dos secretários municipais e técnicos das secretarias em temáticas como, por exemplo, técnicas de bom manejo de fogo, vulnerabilidade da região amazônica às consequências das mudanças climáticas e contribuição das emissões resultantes do desmatamento e queimadas neste cenário. Foi realizado, ainda, um levantamento de dados com a aplicação de 367 questionários em campo ao longo da rodovia Transamazônica e das estradas secundárias em campo. Este trabalho foi crucial para caracterizar os municípios segundo sua vulnerabilidade ao desmatamento e queimadas, e a relação com o padrão de distribuição das atividades de uso do solo, a produtividade em áreas já abertas, a situação fundiária, além de outros fatores.
No decorrer dessas atividades, foi claramente identificado que, não obstante o debate sobre mudanças climáticas envolva governos e organismos internacionais, localmente ainda existem muitas dúvidas sobre o assunto e sobre as oportunidades que estão surgindo e que poderiam beneficiar os municípios amazônicos. Durante as diversas reuniões realizadas para a formulação de estratégias para redução das queimadas e desmatamento, foi também possível observar que, apesar do anseio dos secretários em desenvolver diversas atividades de competência das suas secretárias, a mão-de-obra qualificada para desempenhar atividades de campo é insuficiente, bem como condições logísticas para possibilitar a realização dessas atividades e planejamento para tentar minimizar estas dificuldades.
Em alguns casos, as secretarias perdiam oportunidades de acesso a recursos por não terem ainda condições de elaborar propostas e apresentá-las a possíveis financiadores. A partir destas constatações foi elaborada uma estratégia conjunta entre o IPAM, a FVPP e as secretarias municipais em busca de solução para melhorar as condições de atuação dos municípios, não somente com o objetivo de promover a redução das queimadas e do desmatamento, mas acima de tudo de fortalecer a gestão ambiental como um todo. Desta forma, ficou clara a necessidade de se definir uma estratégia regional capaz de conciliar o desenvolvimento agrícola na região com a conservação dos recursos naturais em uma escala que precisa ir além das barreiras geográficas de cada um dos municípios envolvidos. Embora exista um consenso a este respeito entre o grupo de secretários municipais e as organizações parceiras, era necessário ainda garantir o apoio dos prefeitos dos cinco municípios.
Deste modo, em 2010, a primeira conquista foi alcançada com a realização de um evento em que os cinco municípios, por meio de seus prefeitos, assinaram um documento formalizando a parceria entre o poder público e as organizações parceiras para a Formação de um Arranjo Institucional Intermunicipal que visava a concepção de um programa regional inserido no compromisso de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação florestal (REDD). Além disso, esta parceria deveria integrar políticas relacionadas ao tema do desmatamento e queimadas nas diferentes esferas e, por conseguinte, contribuir efetivamente para o alcance das metas de redução de emissões assumidas pelo PPCAM/PA e PNMC. O documento foi intitulado Memorando de Intenções visando à criação de um Acordo Intermunicipal para a Concepção de um Modelo de Desenvolvimento Rural Sustentável baseado na Redução do Desmatamento e Queimadas e na criação de um Programa Regional de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD).
É importante ressaltar que, pela primeira vez, as prefeituras de municípios amazônicos se reuniram para assumir um compromisso conjunto voltado para a questão do desmatamento e queimadas. No Memorando de Intenções, os municípios se comprometem a:
- Estabelecer um modelo de articulação institucional intermunicipal que viabilize ações estratégicas integradas para a redução do desmatamento e queimadas na área de abrangência dos municípios signatários, permitindo a consecução de um programa regional de REDD;
- Definir estratégias conjuntas para a redução do desmatamento e queimadas;
- Encaminhar os procedimentos legais para garantir a formalização deste arranjo institucional;
- Elaborar um plano de trabalho conjunto entre os municípios signatários deste Memorando de Entendimento, visando a concepção de um Programa de REDD baseado nas atividades de redução do desmatamento e queimadas.
Após esse evento de assinatura do memorando, foram realizadas diversas oficinas entre os parceiros do projeto e, com o apoio de uma consultoria jurídica, onde se definiu que o referido arranjo seria construído nos moldes de um Consórcio Público Intermunicipal de direito público, de acordo com a Lei nº 11.107/05. O interesse de se formar um consórcio pode ser justificado pela expectativa de que os potenciais impactos gerados a partir de uma estratégia de REDD que não está mais focada no nível da comunidade, mas sim no nível regional, e que contribua para o alcance das metas assumidas na esfera estadual e nacional, são inquestionavelmente maiores e estrategicamente mais capazes para atrair parcerias que colaborem para a adoção de um novo modelo de desenvolvimento de baixas emissões para a região amazônica, de forma sustentável no longo prazo e replicável para outras regiões.
A partir daí os secretários municipais, em uma parceria com o IPAM e FVPP forneceram todas as bases necessárias para a formação do Consórcio Intermunicipal para o Desenvolvimento Sustentável da Transamazônica e Xingu, o primeiro consórcio de municípios amazônicos que enfoca entre suas prioridades de atuação a questão do desmatamento e queimadas na Amazônia. Para isso, elaborou-se a documentação jurídica e os princípios necessários (Minuta de Protocolo de Intenções, Minuta de projeto de Lei Ratificadora de Protocolo de Intenções, Minuta de Contrato de Consórcio Público e Minuta de Projeto de Lei criadora de Associação Pública) para criar o consórcio público, nos termos da Lei n° 11.107/05. Tal processo envolveu a formação e participação de um Grupo de Trabalho (GT) composto por representantes dos poderes públicos dos cinco municípios, os quais definiram que o contrato referente ao Consórcio de Municípios receberia o suporte de uma pessoa jurídica de direito público, denominada associação pública, conforme previsto no Art. 41, IV, da Lei n° 10.406/02.
Os objetivos estabelecidos para o Consórcio Intermunicipal de Desenvolvimento Sustentável da Transamazônica e Xingu são:
I – Promover ações que fomentem a redução do desmatamento e as queimadas nos municípios consorciados;
II – Promover a melhoria da qualidade de vida das populações residentes na área de atuação do consórcio;
III – Resolver os problemas comuns dos entes consorciados relacionados à preservação e conservação do meio ambiente, bem como à produção dos diversos setores econômicos da região;
IV – Promover a educação ambiental urbana e rural;
V – Promover ações que agreguem valor à produção de todos os setores da economia dos municípios consorciados, diferenciando-a no mercado nacional e internacional;
VI – Promover ações de saneamento básico dos municípios consorciados nos termos da Lei no 11.445/07
(Diretrizes nacionais para o saneamento básico), a fim de garantir aos entes consorciados abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, e drenagem e manejo das águas pluviais urbanas;
VII – Promover ações de viabilização da produção agropecuária sustentável;
VIII – Promover ações de viabilização da produção florestal através de manejo e;
IX – Promover ações de fomento às atividades de turismo sustentável, mineração, pesca e aquicultura.
Somado a isso, foi definida a estrutura gerencial do Consórcio, que deverá ser conforme indicado na Figura abaixo:
É importante frisar que, de acordo com a legislação brasileira (Lei nº 11.107/2005), a instância máxima de decisão de consórcios públicos intermunicipais deve ser a Assembleia Geral, composta necessariamente pelos prefeitos dos municípios consorciados. O Conselho Executivo é um colegiado, com poder deliberativo nas matérias de sua competência fixada em estatuto. O Conselho Fiscal é o órgão fiscalizador do consórcio, responsável por acompanhar a gestão e fiscalizar as finanças e a contabilidade do consórcio. O Conselho de
Desenvolvimento Sustentável é um importante colegiado consultivo, composto por um presidente do conselho de desenvolvimento sustentável, um vice-presidente e dezoito conselheiros. O Conselho deverá ser formado respeitando-se uma repartição de vagas definida, isto é, será destinada uma vaga para cada uma das seguintes instituições: Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Pará (SEMA), Secretaria Estadual de Agricultura do Pará (SAGRI), Secretaria Estadual de Desenvolvimento Urbano e Regional do Pará (SEDURB), Secretaria Estadual de Desenvolvimento, Ciência e Tecnologia do Pará (SEDECT), Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social do Pará (SEDES), Federação da Agricultura e da Pecuária do Pará (FAEPA), Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Estado do Pará (FETAGRI), Ministério Público Federal e outra para o Ministério Público Estadual; duas vagas para cada uma das instituições: estabelecimentos de ensino superior, ONGs, órgãos do Poder Executivo Federal ligado ao tema do desenvolvimento sustentável; e cinco vagas para os Poderes Legislativos Municipais dos entes consorciados.. A Diretoria Administrativa é o órgão responsável por executar as deliberações da Assembleia Geral, do Conselho Executivo e do Conselho Fiscal, bem como de prestar o suporte necessário administrativo ao Conselho de Desenvolvimento Sustentável.
A estrutura proposta para o presente Consórcio foi construída de forma a garantir a participação da sociedade civil nas discussões sobre as ações do referido consórcio e no controle efetivo do dispêndio de recursos.
Além disso, destaca-se a participação de membros de secretarias estaduais ligadas desenvolvimento sustentável. Isso se justifica pelo fato de que o consórcio foi concebido para servir como um possível modelo para outras localidades do estado do Pará. Desta forma, por se tratar de ações regionais, o envolvimento do estado na proposição de ideias e na tomada de decisões é fundamental.
Após a elaboração dos instrumentos jurídicos necessários para a formação do consórcio municipal, o GT organizou uma visita a cada um dos municípios para apresentar esses instrumentos aos prefeitos e também à Câmara de Vereadores e as representantes de outras organizações locais. Nessa etapa do processo, o município de Pacajá não participou na referida articulação, uma vez que o prefeito não expressou interesse em continuar na iniciativa. Os próximos passos da iniciativa são a formação legal do consórcio, a composição da secretaria administrativa e a elaboração dos primeiros projetos. Os secretários municipais das secretarias de meio ambiente e agricultura e de planejamento foram os principais atores, visto que, após todo o processo de estabelecimento da parceria, conseguiram perceber que o atual contexto representa uma oportunidade sem precedentes para viabilizar um novo modelo de desenvolvimento para a região em bases sustentáveis, uma vez que é marcado pela preocupação das lideranças mundiais com as causas e as consequências das mudanças climáticas e a criação de mecanismos para lidar com as emissões resultantes do desmatamento tropical.
A criação deste novo modelo de desenvolvimento e a efetiva compensação daqueles que reduzem o desmatamento e/ou mantêm os estoques de carbono florestais dentro de seus territórios demanda um esforço conjunto com a participação de parceiros locais, tomadores de decisão e outros atores chaves. Além de promover a conservação da biodiversidade e a melhoria das condições socioambientais na região, essa estratégia apresenta ainda, como potenciais resultados, o fortalecimento da gestão ambiental nos municípios amazônicos e do papel do poder público local e das parcerias estabelecidas na promoção do desenvolvimento sustentável.
Fonte: A Região da Transamazônica rumo à economia de baixo carbono: estratégias integradas para o desenvolvimento sustentável. IPAM/FVPP, 2011. Organizadora: Erika de Paula P. Pinto.